sexta-feira, 29 de maio de 2015

Uma homenagem ao São Victor

Amanhã comemoraremos o dia São Victor. Em homenagem ao dia Santo, um texto da época do milagre:



"Capítulo 9: Atlético 1 x 1 Tijuana: O Homem de Gelo vira santo

            A justa empolgação com o heroico empate inspirou uma ideia, surgida nas redes sociais, baseada no hit da torcida “caiu no Horto, tá morto”. Os torcedores compareceriam ao Independência usando a máscara da morte do Pânico. Criaríamos o ambiente de um cemitério realmente aterrorizante, apesar de o embate parecer tranquilo. Com a partida no meio de um feriado prolongado, eu estava no sítio, próximo a Sete Lagoas, e planejava sair às 19 horas para assistir à grande e praticamente certa classificação do Galo, com início às 21h50 no Horto. Com ingresso na mão, aproveitei o dia tranquilo. Repus as energias com uma cochilada à tarde e, sozinho, deixei no sítio os amigos, quase todos alvinegros, sob desejos de boa sorte. Para minha surpresa, cheguei bem cedo, encontrei meus primos e, embalado com a empolgação de torcida, comprei, como todos, uma máscara da morte.
            Já pensávamos na semifinal. Tudo parecia perfeito. O resultado no México e o retrospecto no Horto, espetacular, animavam a massa a comparecer, apenas para saber de quanto seria a vitória e como seria decidida a partida. Festa armada, rua de fogo, máscara do pânico, mosaico e tudo mais. Dia de comemorar. A Arena Independência nos traz essa confiança, às vezes excessiva. Esquecemos de pensar no adversário, vencedor em 2012 do forte campeonato mexicano, que, inclusive, tirou muitos jogadores do futebol brasileiro. Esquecemos da maratona vivida pelo Galo, enquanto os Xolos abandonaram o Apertura local para disputar a Libertadores há muito tempo. Quase pagamos pela arrogância.
            Logo no início, o Tijuana mostrou-se melhor do que imaginávamos. Não seria tão fácil quanto supúnhamos. Quase morri do coração, com o susto de um gol dos Xolos, logo anulado, para meu alívio. Normal. O gol do Galo era questão de tempo, afinal, era o Horto. Mas foi o Galo que tomou um gol. Nessa hora, senti algo ruim, um clima estranho. Geralmente, quando sofremos o primeiro gol no Horto, mantenho a tranquilidade, certo de, cedo ou tarde, a situação mudar. Naquela quinta, não. Quando a bola de Riascos entrou, havia algo de diferente. Como últimos brasileiros na competição, a falsidade da imprensa de fora de Minas me incomodava, abusando da maldita frase “o Atlético é o Brasil...”. No final da primeira etapa, o capitão Réver empatou o jogo. Não haveria motivo para medo. Mas, estranhamente, aquele sentimento não se dissipava sob hipótese alguma, nem mesmo depois do empate. Partilhava o clima estranho com a arquibancada. Estariam as máscaras contra a gente, indicando nossa própria morte, vinda da América do Norte? O Galo parecia acomodado com o resultado e não matou o jogo. Ao meu lado, alguém comentou: “estranho, o resultado elimina os caras, mas eles fazem hora”. Minha língua profética respondeu: “a esperança deles é marcar um gol no finalzinho e não dar tempo para a gente reagir”.
            O jogo continuava tenso, apreensivo. Para nós, torcedores, corações na boca, a noção de tempo não existe. O medo persistia, algo anormal para um jogo no Horto. Embora sem a mínima ideia de quanto tempo ainda faltava, desejava logo o final do jogo, pois o resultado de 1x1 classificava o Galo. A equipe mexicana, como nós, usava bem a jogada de o centroavante desviar chutões para armar ataques. Numa bola lançada para a frente, houve esse desvio, a zaga atleticana falhou e Léo Silva derrubou Riascos, o bom atacante colombiano, dentro da área. O juiz, com coragem singular, apitou o pênalti contra a equipe da casa. A primeira reação mental, por eu acreditar estarmos com uns 30 do segundo tempo, consistiu em imaginar mais um empate garantindo a classificação nos minutos finais. Afinal, quem cai no Horto está morto. Vi, então, uns dois torcedores ao meu lado deixarem o estádio, aquilo também não era normal, bem como a demora para a cobrança da penalidade e o excesso de reclamações. Na minha frente, um torcedor, ouvindo a transmissão pelo rádio, xingou: “Puta que o pariu, um pênalti aos 47 do segundo tempo”.
            Gelei. Nunca senti tanto medo na vida. Pela primeira vez, desde a inauguração do novo Independência, tive pânico. Tremia, sentia a espinha gelar e, confesso, até hoje sinto, ao rever o lance. Perderíamos. Durante a eternidade entre a marcação e a cobrança do pênalti, vários filmes se passaram em minha mente. Não conseguia crer no término do sonho. Logo ali, no Horto, onde matamos tanta gente. Não podia acontecer. Terminaria a mística do Horto? Pior, o sonho da Libertadores, nunca antes tão real, acabaria? Um adeus? Não me conformava. Havíamos chegado tão longe e tão perto... Não poderia acabar ali. Mãos à cabeça e depois ao rosto, entre o nariz e a boca, eu mostrava uma expressão nunca feita antes, misto de terror e apreensão. Não sei a proporção de cada, mas, garanto, ambos me consumiam numa quantidade insuportável. O silêncio no estádio era atormentador. O Victor, goleiraço, desde quando chegou ao Galo, em pênaltis, só pulou para o lado direito. Não me lembrava de nenhuma defesa dele em penais.
            Não sabia se via a cobrança, se virava de costas, se fechava os olhos. Simplesmente, não conseguia me mover, não conseguia falar. Apenas mantinha as mãos na cabeça. O cronômetro já registrava 48 minutos e 57 segundos quando Riascos, o melhor jogador da equipe adversária, enfim, correu para bola. Juro, o coração parou de bater por alguns milésimos de segundo. De longe, não vi bem o lance, onde bateu, mas vi a bola subindo. Certamente, não havia entrado. Em seguida, ao ver os atletas em direção ao juiz, pensei ter sido anulada a cobrança. Após intermináveis segundos, a impressão se desfez.  Os jogadores corriam para abraçar o herói Victor. Ao meu lado, meus primos choravam. Nem lágrimas para derramar, eu tinha mais. Não acreditava. Talvez ainda não acredite. Todos comemoravam. O Victor defendeu. Sina de campeão, eu pensava. A sorte, depois de nos pregar tantas peças, enfim a nosso lado, merecia a retribuição do favor. O sonho continuava vivo. Para começo de conversa, a máscara do Pânico, pelo menos a minha, nunca mais voltaria ao Independência. Em repetidos gritos de “agora é nosso. Somos campeões, não tem jeito”, eu externava o sentimento de termos, ali, consolidado a conquista da Libertadores. Mal sabia quantas emoções a Libertadores ainda nos reservava...

            A sorte da primeira partida nada representava diante daquele momento incrível. O jogo acabou e a torcida, ensandecida, não parava de gritar e vibrar. Nascia um novo ídolo, espírito imortal: Victor, o homem de gelo, virava São Victor, um santo! Antes de pegar a estrada para voltar, fitei o campo, o placar, o céu. Estávamos vivos. Viajei os 60 km de estrada buzinando e, quando cheguei ao sítio, a festa rolava solta. São e salvo, sem precisar de dirigir mais, pude enfim tomar um verdadeiro porre e relaxar."



TEXTO RETIRADO DO LIVRO: Sangue, suor e lágrimas: 13 capítulos de uma saga vista da arquibancada. 

Para mais informações: http://www.lulu.com/spotlight/gabriel13